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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 17 de dezembro de 2023)
1|3 ONDE ME SINTO - Regresso da Maresia Foguete
“Nem eu nem o Pedro adoramos viagens de cruzeiro, mas pela sua mãe, para lhe trazer de volta a maresia e avivar as boas memórias, fomos os três e correu muito bem. A cadeira de rodas em que se move aos seus 90 anos não a impediu de quase nada. Veio recarregada de vida e maresia.
Para nós foi também um merecido descanso depois de um ano de árduo trabalho. Temos ambos 66 anos, mas trabalhamos como se tivéssemos 20.
Sou produtor de teatro e televisão. Além da produção e montagem - organizo o necessário para a posta em cena - faço a maquilhagem e caracterização dos atores. Essa vertente, que mantenho, foi a constante ao longo da minha vida profissional e a que me abriu outras portas.
Só este ano produzi a ‘Pentesileia’ no Teatro do Bairro - ainda fazia o Castelo de São Jorge - 'Os Gigantes da Montanha’ de Pirandello nas Ruínas do Carmo e ‘A Tempestade’ de Shakespear no São Luiz… Também eu estava a precisar daquele nosso retiro no mar.
A mãe do Pedro é a figura cimeira de uma família conservadora, com um estatuto sociocultural que a minha nunca teve, e em que fui entrando de forma ‘sorrateira’ e natural, tal como ela em mim.
Eu e o Pedro temos uma relação inequivocamente linda, há 38 anos. Creio que foi a evidência dessa beleza que ganhou o respeito de todos. Ainda conheci a avó do Pedro - a avó Lena - a primeira que identificou, com carinho, a natureza especial da nossa relação.
A minha sogra é para mim uma segunda mãe. Sentimos cumplicidade. Ela merece receber toda a doçura que eu lhe possa dar. Adoro também os meus cunhados e sobrinhos e sou um orgulhoso padrinho da sobrinha mais velha.
O universo foi generoso comigo…
Nasci no Brasil, numa família simples. Os meus pais saíam de casa para o trabalho às 6h da manhã, a minha irmã ia para a escola e eu, com 6 anos, varria, fazia as camas e cozinhava o arroz para o almoço, em cima de uma cadeira.
Quando queria ouvir música ia para casa de um tio, que tinha um gira-discos fascinante, como um tesouro. A música que mais me comovia era o fado, cantado pela Amália. Chorava copiosamente. Quando vim a conhecê-la pessoalmente, era como se já a conhecesse de toda a vida.”
(continua)
(publicado a 18 de dezembro de 2023)
2|3 ONDE ME SINTO - A primeiríssima
(continuação)
“Sempre estudei, ainda que aos 12 anos tivesse de ir trabalhar para continuar os estudos à noite. Empreguei-me numa loja como ‘pacoteiro’: fazia embrulhos.
Na hora de fazer formação superior, escolhi Artes Dramáticas, porque me fascinava a beleza associada ao espectáculo: do teatro à música, da televisão ao circo. Quando acabei o curso, percebi que tinha '25 pernas esquerdas' como actor. Por outras palavras, era um canastrão! (risos) Mas continuava fascinado pela luzes, tecidos, cores… e pela imagem dos atores.
Um dia, por falta de um maquilhador, ofereci-me para maquilhar uma vedeta que produzia os concursos Miss Brasil. Correu de tal forma bem, que em pouco tempo estava a fazer cursos de maquilhagem e caracterização de atores e a trabalhar para para novelas de televisão.
Nesse meio, conheci um casal alemão que tinha uma clínica de estética orientada para o mundo do espetáculo e me convidou a ir para Munique. A viagem previa uma paragem em Madrid, cidade que não me encantou mas teve, pelo menos, o mérito de atiçar a minha vontade de conhecer Lisboa. Apanhei o comboio em Atocha e entrei em Lisboa ao amanhecer. Já num taxi a caminho do hotel, com a rádio ligada num programa do António Sala e Olga Cardoso, vi o Tejo ao som de ‘Lisboa, não sejas francesa’, na voz da Amália. As lágrimas escorriam-me pela cara abaixo. Não conseguia parar de chorar mas, sem saber, pararia em Lisboa para o resto da minha vida. Adiei Munique, até sempre.
Aqui contactei a RTP, que assegurou os primeiros dias com trabalhos de maquilhagem ocasionais. No meu jantar de despedida, aproximou-se uma senhora da minha mesa, perguntando: ‘O rapaz está triste, ou é triste?’ Depois, abeirou-se de um piano e, olhando na minha direção, começou a cantar: ‘Eu sei que eu tenho um jeito, meio estúpido de ser…’. Era a Simone de Oliveira, senhora com quem construí uma forte relação de amizade, que perdura. Criei outras amizades, mas ela é a primeiríssima!
A despedida não se deu porque, trabalho atrás de trabalho, mesmo em recibos verdes, havia sempre uma razão para ficar.
Um dia, recebi uma mensagem do Nicolau pedindo para falar comigo.”
(continua)
(publicado a 19 de dezembro de 2023)
3|3 ONDE ME SINTO - Amor
(continuação)
“O Nicolau queria montar uma produtora e precisava de mim. Eu não o conhecia. Combinámos encontro no Parque Meyer. Quando lá cheguei, perguntei a um senhor quem era o Nicolau Breyner. Respondeu-me: ‘Vem falar com esse senhor? Ele é má pessoa. Péssimo mesmo!’ Pintou-me o pior cenário. Apreensivo, ainda esperei 20 minutos, observando o Varela a ensaiar. Quando decidi desistir, o mesmo senhor a quem me dirigira perguntou-me onde ia eu.
Respondi que ia embora, deduzindo que o Sr. Nicolau já não quereria falar comigo, ao que ele respondeu, com um sorriso maroto: ‘Eu sou o Nicolau Breyner!” De terrível não tinha nada. Adorei aquele homem, para quem trabalhei muitos anos.
Foi na produtora dele que encontrei o amor da minha vida. Um dia, o Pedro convidou-me para jantar e… passámos a jantar sempre juntos até hoje. Ele fez-me sentir que nasci duas vezes: a segunda em Lisboa. Hoje sou muito mais português que brasileiro.
Trabalhámos durante 20 anos frente a frente mas, inteligentemente, nunca levámos o trabalho para casa. Casámos 25 anos depois de estarmos juntos, com a maior discrição. Só nós dois. Quando informámos os seus pais, recordo a reação do pai, um senhor que eu adorava. Era calmo e silencioso, o que impõe sempre um especial respeito. Cruzou os braços e perguntou: ‘Vai haver festa?’ Perante a nossa negação, abriu os braços e respondeu: ‘Isso é que está mal!’ (risos)
Acho que o Pedro quis, com o casamento, salvaguardar a minha situação no caso de partir antes de mim. Nem quero pensar nessa hipótese, mas ele pensou.
Tenho a consciência da diferença que existe entre o património de um e outro. Mas, para mim, é claro que todas as peças que ele tenha de família, para a sua família voltarão.
Não penso na morte, vivo o dia presente. O universo deu-me tudo, mas o mais importante foi o Pedro e a relação pura que vivemos. Ao lado dele, nunca senti o custo da fidelidade; ela surge naturalmente. Nunca penso no que não tive ou ficou por fazer, da mesma maneira que não faço grandes planos para o futuro. Caminhamos juntos em total sintonia, sempre de acordo um com o outro, sempre sem desejo de estar noutro lugar. Estou onde me sinto!”