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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 17 de setembro de 2023)
FASCINAÇÃO
“Vim para a Casa do Artista em 2015, com a minha mulher. Vim por ela, como iria com ela para onde fosse.
Estivemos 53 anos juntos. Só a sua morte, há 4 anos, nos separou fisicamente. Mas ela não saiu de mim. Continuo a sentir-me casado, razão pela qual nunca tirei as alianças.
Fui seu cuidador na doença prolongada - Demência de Corpos de Lewy, uma combinação de Alzheimer e Parkinson - e seu marido em qualquer circunstância. Só não lhe dava o banho, por falta de conhecimento, mas dava-lhe comida na boca, pintava-a, passeava-a na cadeira de rodas…
Sempre senti por ela um amor imenso; imenso, até nos seus últimos dias, já em estado vegetativo. Ela merecia todo o meu amor, pois foi sempre uma excelente companheira, uma mãe extremosa e uma avó impressionante. Temos dois filhos e dois netos.
Ambos adorávamos música e leitura. Éramos cúmplices em tudo na vida, desde os gostos às tarefas domésticas.
A sua demência progressiva começou dois anos antes de virmos para aqui. Um dia partiu a casa toda. Não me zanguei com ela, como poderia eu zangar-me com uma doente?
Ainda aguentei o que pude, até reconhecer que o melhor para ambos era virmos juntos - sempre juntos - para a Casa do Artista.
A partir de certa altura ela já não reconhecia ninguém, senão a mim. Quando sofria de dores durante o banho, sempre chamava o meu nome, o único que ela conseguiu dizer até ao fim: 'Zé'. Foi um amor para a vida. Nunca admiti substituí-la, nem pouco mais ou menos.
Nos seus últimos dias, foi para uma clínica, para morrer. Aí eu não podia ficar de noite mas passava lá as tardes, falando-lhe, dando-lhe festinhas, tranquilizando-a. Instalei duas colunas no quarto e punha a tocar as músicas de que ela mais gostava. Adorava ‘Fascinação’, da Elis Regina.
Estava ao seu lado quando morreu, o que, de certa forma, me ajudou. Já estava preparado para a deixar ir.
Não sou assim por compromisso religioso ou moral. A dedicação que mantenho por ela é espontânea, não uma obrigação. Não faço nada por obrigação, mas por instinto. Não confundo valores com dogmas. Eu sou de valores, dos que vêm de dentro para fora.
Já não deixei a Casa do Artista. Com 82 anos, não podia estar num lugar melhor.”
Fotografia: Mª. Helena da Bernarda