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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 19 de setembro de 2023)
1|3 COMO PEDRA NA PAISAGEM - A mudança
“Tenho 78 anos de uma vida com alguns desgostos profundos, mas todos os dias acordo feliz, só por estar acordada. Sei que um dia não vou acordar. E só por poder ver a luz de um novo dia, tenho de agradecer a Deus. Mas também acredito que haverá outra vida, certamente melhor que esta.
Talvez seja a minha origem transmontana que me dá a resistência. Trás-os-Montes é rica em lendas. Diz-se que lá, as mulheres são homens e os homens são lobisomens. É uma outra forma de dizer que as pessoas são autênticas, terra-a-terra, rijas como a pedra que prevalece naquela paisagem.
A perda repentina dos meus pais, em momentos diferentes, foi um choque. Embora eu já não vivesse com eles, a ligação era profunda. Possibilitaram-me uma infância e adolescência maravilhosas. Fui feliz como nunca mais viria a ser.
Eu adorava subir às árvores com os meus irmãos, que eram muitos. Não nos faltava comida. Brinquedos também não, porque a Natureza era toda ela um brinquedo, e era toda minha.
Quando acabei a 4ª classe, não podia continuar a estudar. Comecei a ocupar-me com as tarefas domésticas, a agricultura e o gado. Mas o que eu mais adorava eram os arraiais, que me permitiam dançar na rua com as minhas irmãs. Eu devia destacar-me, porque as pessoas estancavam à minha voltar só para me ver dançar.
Um dia, a minha irmã mais velha, que fazia serviço doméstico como interna em Lisboa, convidou-me a vir com ela. Teria eu 17 anos. Custou-me deixar os meus pais, quase tanto como convencê-los a deixar-me vir. Lembro-me de ver a minha mãe chorar - era muito agarrada aos filhos - e de eu fazer um esforço para me manter dura. Não podia quebrar. Se eu chorasse, o meu pai ter-me-ia impedido de vir.
Fiquei com a minha irmã na casa onde ela trabalhava. Um dia, ela levou-me a ver uma revista com a Florbela Queiroz. Fiquei tão encantada que pensei: ‘É isto que eu quero fazer!’
Dito e feito! Quando cheguei a casa com a minha irmã, inventei uma desculpa para sair, regressar ao teatro e dizer: ‘Quero vir para o Teatro!’ Só assim!
No dia seguinte ia começar um revista nova e disseram-me que me apresentasse às 4h da tarde para prestar provas como bailarina.”
(continua)
(publicado a 20 de setembro de 2023)
2|3 COMO PEDRA NA PAISAGEM - Tudo menos isso
(continua)
“Sem formação, comecei a vida como bailarina no teatro de revista. Estreei-me com 17 anos. O meu primeiro ensaiador perguntou-me se alguma vez eu tinha aprendido dança ou ginástica. Respondi-lhe que a minha única ginástica era subir às árvores, na minha terra.
Ele ensinou-me tudo. Precisei de arranjar mil desculpas em casa para não faltar aos ensaios. Rapidamente aprendi a dançar em pontas. Quando me consideraram-me apta, quiseram fazer-me um contrato e pediram-me o Bilhete de Identidade. Aí é que foi o problema. Em vez de ficar eufórica, fiquei preocupada por ser menor. Só tinha 17 anos. Precisavam da permissão do meu pai. Mas se ele estava em Trás-os-Montes?!
Lá ultrapassaram o entrave, fazendo-me um contrato no qual fui tutelada pelo Ministério do Interior. O Ministério é que foi legalizar uma ilegalidade. (risos)
Liguei-me de tal forma ao teatro que fiz quase tudo o que havia para fazer além da dança, desde interpretação ao fabrico de adereços. Fiz muitos chapéus.
Mesmo no mundo do espectáculo, sempre gostei de me levantar e deitar cedo. De certa forma, isso protegeu-me de muitos riscos. Só não me protegeu do meu primeiro e único amor…
Foi no Teatro que o conheci. A nossa ligação foi imediata e profunda. Vivemos juntos 4 anos, relação que me deu a minha única filha, tinha eu 20 anos.
Quando a menina tinha 2 anos e meio, ele ficou fora de casa uns dias… pensava eu. Quando ouvi a mulher do chefe dele dizer ‘Olhe, o Pinho casou ontem e está em lua-de-mel’, fiquei de pedra. O choque foi de tal maneira que decidi nunca mais querer homem nenhum. Passaria a ser a mulher mais independente do mundo, preparada para criar a minha filha sozinha. Ele enganou-me tão bem, que nunca poderia voltar a confiar num homem.
Nunca mais o vi. Só sei que após ter casado, emigrou para a Alemanha. Partiu sem dar o nome à filha. Tive de ir a Tribunal, para que ela tivesse o seu apelido. Consegui-o, sem que ele exigisse teste de paternidade, pois conhecia-me bem. Nunca exerceu de pai nem deu a mínima contribuição para o sustento da menina. Eu também não lhe pedi nada, não fosse ele tirar-me a filha. Tudo menos isso!”
(continua)
(publicado a 21 de setembro de 2023)
3|3 COMO PEDRA NA PAISAGEM - Desgosto maior
(continuação)
“Não consegui dar um pai à minha filha, mas nunca lhe faltei com nada. Isso não impediu que nela se instalasse uma amargura.
Um dia ela quis falar ao pai, teria 9 anos. Queria explicações que eu não lhe podia dar. Ajudei-a a enviar uma carta, endereçada através de uma assistente social, para evitar o contacto. A mesma senhora escreveu de volta, dizendo que o pai pedia que a filha não o contactasse pois a mulher era ciumenta e far-lhe-ia a vida num inferno. Custou-me tanto dizer à minha filha que o melhor era ela esquecer e que não valia a pena estragar a vida ao pai. ‘Vamos dar-lhe esse direito’, disse-lhe. E a minha filha respeitou a sua vontade, certamente com muita dor.
O tempo passou mas, infelizmente, eu e a minha filha não mantemos uma relação de proximidade. Eu resigno-me, tentando aceitar os seus traumas. Também aceito a angústia que possa ter sentido quando eu ia para o Teatro e ela ficava sozinha, por falta de apoio familiar. Aceito não ter sido o tipo de mãe com uma vida estável, que todos os filhos gostam. Vivo em esforço para compreender o seu afastamento, há muitos anos já…
Pouco anos depois de a minha filha casar e ser mãe, sentindo que o meu próprio papel de mãe estava cumprido, emigrei para os Estados Unidos, disposta a fazer qualquer trabalho sério. Precisava de ganhar a vida. Aos fins-de-semana fazia teatro, mas isso não dava para me manter. Então, nos dias úteis trabalhava a dias.
Durante a minha estadia na América falávamo-nos, trocávamos cartas e telefonemas. Todos os anos vinha visitá-la à Amadora.
Um dia, fui visitá-la e já lá não vivia. Sem qualquer zanga entre nós, apagou todos os rastos. Fiz várias tentativas de a procurar, mas desconheço a nova morada e não há ninguém que me dê o mínimo sinal da sua vida.
Hoje ela tem 58 anos e seis filhos, netos que não vejo.
Vivo na Casa do Artista desde os 64 anos, entre a resignação e a esperança. Mantenho uma fé inabalável em Deus, mas o meu coração fechou-se, salvo para apoiar todos os residentes que mais precisam de ajuda.
A Deus, só Lhe posso dar contas daquilo que eu faço e só Lhe peço uma coisa: que nunca abandone a minha filha.”
(publicado a 22 de setembro de 2023)
O REENCONTRO
CLIQUE NA IMAGEM PARA VER VÍDEO DO REENCONTRO!!
“Quando cheguei àquela casa, nunca pensei que abrissem a porta a duas desconhecidas. Fomos recebidas por uma jovem - mãe de um bisneto meu cuja existência desconhecia - e pela sua mãe. Assim que eu disse de quem era avó, os braços abriram-se-me com imensa generosidade.
Disseram-me que a minha filha estava viva e bem - tudo o que eu queria ouvir - e que ela lhes falava de mim. Senti que me tiraram 20 anos de angústia. Fizeram-me sentir que ali eu estava em família. Parecia que todas estávamos à espera daquele momento.
Maior pressão senti quando me disseram que a minha filha e neto estavam a chegar para entregar o meu bisneto. Quando a campainha tocou e ouvi os passos na escada, aí realmente senti o coração a bater forte. Nem sei descrever o que senti após uma espera de duas décadas: era urgência, ansiedade, receio…
Eu desejava conhecer toda a família mas a minha filha… é o amor da minha vida. Quando ela me viu, abriu imediatamente os braços e fundimo-nos num abraço demorado. Só me lembro de que ela me disse: ‘Eu amo-te muito, mãe’. Respondi: ‘Também te amo muito, filha!’ Já não recordo mais nada. E mais nada era preciso dizer, naquele momento. E, se calhar, é só isso que mãe e filha crescidas precisam dizer.
Desejo desenvolver uma proximidade com todos, mas a ligação à minha filha é única. É que os netos não os vi crescer; ela sim!
Acabou-se a angústia de saber o que lhe possa ter acontecido. Parti com um alívio inexplicável e a mesma certeza: o meu amor pela minha filha é incondicional.
Decidimos as duas que a história da nossa vida era a que quiséssemos contar daqui para a frente. O nosso livro só tem páginas brancas.
Acho que esta noite não vou conseguir dormir. Mas desta vez é de felicidade!”
NR: As fotografias foram feitas com telemóvel, após as lágrimas terem sido limpas. A máquina ficara no carro, porque o objectivo não era fotografar o momento. Por um lado não se esperava que este reencontro acontecesse já hoje. Por outro, não havia intenção de fotografar. Mas foi tudo tão espontâneo - os olhares, os beijinhos - que não resisti.