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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 17 de junho de 2023)
UMA VOZ QUE SAI DO CORAÇÃO
“Vim para a Casa do Artista com o meu irmão, em Fevereiro passado. Ambos estamos ligados ao mundo do espectáculo e ainda mais ligados um ao outro…
Ele, Mário Valejo, foi bailarino e coreógrafo, designadamente de muitas marchas populares. Eu, Maria Valejo, fiz do fado a minha vida, enquanto me senti bem em cima de um palco. Aos 67 anos achei que era hora de terminar a minha carreira.
Com 80 anos feitos, sinto-me óptima e cheia de energia, mas guardei o fado no meu passado, repleto de memórias bonitas. Bendita a hora em que o escolhi como forma de estar na vida.
Tanto eu como o meu irmão tivemos as nossas relações sentimentais. De uma relação de cinco anos nasceu a minha filha, que hoje tem 50. Foi sempre uma filha maravilhosa, o melhor que Deus me poderia ter dado. Mas a relação com o pai… não rimava! Eu tinha um sentido de independência que não era compatível com o seu sentido de posse. E eu reconheço que sou muito inteira. Sou filha de mãe alentejana com pai espanhol e do signo Carneiro. Só sei viver podendo ser eu mesma!
Além da minha filha, criei uma menina que é filha do coração. Quando tinha seis meses, a sua mãe cegou e deixou-a comigo; e comigo viveu até casar. Eu promovia o contacto dela com os pais. Quando de pequenina me chamava de mãe, eu procurava corrigi-la, tentando que me tratasse pelo meu nome. Sou Maria Joana, mas Maria sempre me bastou. Ela balbuciava ‘Dai’ e com esse nome para ela fiquei.
Tanto eu como o meu irmão nos separámos e perdemos os nossos pais. Quando nos vimos ambos sozinhos, decidimos coabitar na casa deles. Portanto, há quase 50 anos que vivo com o meu irmão. Tive alguns namorados, nenhum pelo qual valesse a pena coartar a minha independência. A coabitação com o meu irmão não me limitava; com outro homem, sim.
Sempre nos tratámos por manos. Entre nós existe uma profunda dedicação, que o tempo veio reforçar. Com o passar dos anos, eu tenho mantido a genica - pego no carro e vou para todo o lado - enquanto o meu irmão começou a sofrer de demência. Percebi que eu não poderia deixá-lo em casa sozinho, mesmo que por um par de horas.
Foi por ele que tomei a decisão de virmos os dois para a Casa do Artista, partilhando quarto. Ele não aguentaria muito tempo aqui sem mim. Apoiá-lo é o meu dever, porque ele também me apoiou quando eu era pequena, sempre com uma calma que não vacilava quando eu fazia traquinices. Foi um filho, um irmão e um tio excelente.
Há dias em que acorda e me pergunta: ‘Quem é a senhora?’ Respondo-lhe: ‘Então não sabes quem eu sou?’ Diz-me: ‘A sua voz não me é estranha mas não sei quem você é. E aviso-a já que a minha irmã não gosta de ninguém aqui no quarto.’ Com calma, digo-lhe que sou a sua irmã. Responde-me que sou uma senhora que ele não conhece. Peço-lhe que olhe bem para mim e então pergunta-me, inseguro: ‘És tu, querida? De verdade que és tu?’
Não é sacrifício estar na Casa do Artista nem me sinto limitada. Aqui posso sair, sabendo que o meu irmão não fica abandonado. Todos os dias saio às 7h30 da manhã para fazer uma hora de caminhada. Mas posso fazer muito mais…
Desejei muito organizar uma marcha popular aqui na Casa do Artista, para marcar esta quadra com uma alegria contagiante. Os que não puderem marchar - a maioria não pode - vêem, cantam e batem palmas. Recebi o apoio da instituição, mas a tarefa é hercúlea. Ando a costurar o vestuário e adaptei uma marcha antiga instrumental, à qual ponho a minha voz. Confesso que ando cansada mas vale a pena sorrir e fazer sorrir.
Mesmo cansada, não paro. Nem quero parar!”