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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 19 de novembro de 2023)
AS MINHAS HISTÓRIAS…
ao domingo, com Maria Isabel Mexia.
Inicio uma série semanal de pequenos textos de Maria Isabel Mexia, uma senhora que dedicou a sua vida profissional ao ensino da música, residente na Casa do Artista e cuja história publiquei nesta página.
A Isabel - assim a trato, simplesmente - tem um enorme talento para a escrita. Não escreve de forma rebuscada, mas transporta para os seus textos uma inteligência criativa, o seu olhar arguto, um educado sentido de humor e a naturalidade elegante que marca a sua imagem e forma de estar.
A Isabel é tia de Pedro Mexia, poeta, cronista, crítico literário, comentador político e consultor cultural do Presidente da República. Não obstante o exercício de tantas atividades, teve o Pedro a disponibilidade e a sensibilidade para reunir os textos da sua tia e publicar um livro de edição de autor, familiar, com o título “As Minhas Histórias”.
Tudo isto é bonito. Não conheço o Pedro, mas se já tinha admiração pela sua presença na cultura portuguesa, passei a admirá-lo ainda mais pela sua disponibilidade em valorizar, de forma tão bonita, os pequenos contos da vida real da sua tia.
A Isabel escreveu, o Pedro editou e eu sinto o impulso - que encaro como privilégio - de fintar a linha editorial desta página, publicando aos domingos, durante algumas semanas, os textos mais curtos desse pequeno mas lindíssimo livro de memórias.
Este primeiro será um dos mais pequenos contos, face ao tamanho desta introdução.
Muito obrigada à Isabel Mexia, ao seu sobrinho Pedro, à Casa do Artista por ser fonte inspiradora, e a vós.
MHB
NEGÓCIO DA CHINA
“Um amigo do meu pai disse-lhe que vendera uma certa propriedade por um preço que o meu pai achou exorbitante. Então o amigo, serrano manhoso, respondeu-lhe: ‘Eu disse ao comprador que ele tinha de me pagar duas coisas: a propriedade e a vontade que eu não tinha de a vender.”
MEXIA, Maria Isabel (2023) - “As Minhas Histórias”
(publicado a 26 de novembro de 2023)
NUNCA FIANDO
Quem tinha alguma coisa de seu, no princípio do séc. XIX e no vale do Mondego, pagava uma tença (*) aos bandos de ladrões para não lhes assaltarem as casas. E este contrato dizem que resultava bem.
A minha avó paterna, que era dali, dizia que a avó dela usava esse processo para ter descanso, e contava à neta o seguinte caso: um senhor foi pedir-lhe um favor, um tanto acanhado, e lá disse como pôde, com familiaridade estranha: ‘Olhe comadre, a minha filha vai casar, e casa muito bem. Vai ter melhor estatuto social, e como a comadre calcula, o meu não é grande coisa. Sabe, as pessoas têm a língua comprida. Eu quero fazer uma festa de casamento de acordo com a categoria que ela agora vai ter. Por isso, venho pedir se a comadre me empresta o seu colar de diamantes para ela usar nesse dia’. A comadre fez-lhe a vontade, e tudo correu na paz do Senhor.
O tempo passou. Um mês, dois meses, três… etc. Até que um dia o pai da noiva foi a casa da minha avó e disse-lhe: "Ó comadre, eu estou um tanto envergonhado e peço-lhe desculpa de não ter vindo há mais tempo, mas não imagina o que me aconteceu, a arrelia que eu tive. Quando a noiva saiu da igreja, tropeçou, e com o solavanco o colar partiu-se e os diamantes espalharam-se todos pela calçada, pela terra batida, e até pelas valetas. Não se encontrou nem um. Olhe comadre, digo-lhe que me fartei de trabalhar, meses a fio para reconstituir a jóia, até que finalmente consegui, e aqui lha venho entregar". Ela respondeu, pesarosa: "Ó compadre, não valia a pena incomodar-se, esse colar era o falso’.”
MEXIA, Maria Isabel (2023) - “As Minhas Histórias”
NR: (*) Pensão dada como remuneração de serviços prestados
(publicado a 10 de dezembro de 2023)
NO COMMENTS I
Eu era professora há pouco tempo, e estava a dar aulas no Liceu Rainha Dona Leonor, na Junqueira, no palácio onde nasceu o dramaturgo D. João da Câmara, onde estive muitos anos.
Numa manhã de Julho eu vigiava a prova escrita de Ciências Naturais do 7º ano. Estava sozinha, o que não era costume. Possivelmente não haveria mais ninguém disponível. Nessa época havia muitos alunos. Naquele liceu eram cerca de mil.
A sala desta prova ficava no sótão do palácio, que tinha sido improvisada para o devido efeito. Eu nem conhecia aquele sítio, o que não admira, pois segundo dizia Lampedusa “um palácio só é digno desse nome quando não se conhece todo”.
Como disse anteriormente, estava sozinha, os alunos concentrados a escrever. Cansada de olhar para o tecto “mansardé”, fui até à janela que dava para uma varanda, donde vinha um arzinho fresco. Havia ali vasos com flores e plantas variadas e reparei que estava, meio escondida, uma gaiola com um coelho lá dentro. Estranhei, e pensei que devia ser de alguma funcionária que o tinha ali deixado para depois o levar para casa e servir de pitéu à família. Impressionou-me o ar abatido do coelhinho, que nem era grande. Com o focinho caído, os olhos murchos, metia dó.
Arranquei então umas ervas grandes duns vasos e dei-lhas. O coelho comeu-as com sofreguidão e a pouco e pouco ficou mais animado. Fiquei contente, e achei que já tinha feito a boa obra desse dia. A prova acabou, e saí.
No dia seguinte tive outra vez serviço de exames. Quando terminei, fui ao bufete lanchar, como de costume. Ouvi então algumas pessoas falar sobre um caso que acontecera na véspera, no gabinete de Ciências Naturais, relativo ao material de exame, na prova prática do 7º ano: em Zoologia, era preciso um coelho adormecido, para poder ser analisado, e em vez disso, puseram um coelho viçoso e fresco; em Botânica, as plantas que deveriam ser classificadas, tinham desaparecido.
Eu, que já tinha lanchado, paguei e disse: “Até amanhã”.
MEXIA, Maria Isabel (2023) – “As Minhas Histórias”
(publicado a 17.12.2023)
O BIDÉ
Os meus pais cumpriam sempre a prescrição que a medicina dava às crianças: um mês na praia, todos os anos.
Como em casa deles houve meninos toda a vida, eu, que era a filha do meio, apanhei “ar do mar” suficiente até ao fim da minha existência.
A minha mãe ia sempre à Figueira no princípio do Inverno alugar uma casa. Ela era muito despachada e eficiente. Saía da Lousã às sete da manhã, e voltava ao fim da tarde, com a casa contratada. A minha mãe tinha três exigências para o aluguer dessa casa: o preço, o tamanho e o local. Às duas primeiras entendem-se as razões; e a outra é porque teria de ficar perto do mercado. Além de a minha gente comer muito, havia quase sempre mais pessoas à mesa. Por isso a minha mãe tinha de saber se a baixela da casa e os apetrechos de cozinha eram suficientes para confecionar e servir alimentos para comilões como aqueles, graças a Deus. E insistia neste ponto.
Andava a dona da casa a mostrar as instalações sanitárias, e chamou a atenção da minha mãe para um bidé, que a senhora gabou e de que exaltou as qualidades, neste caso a sua utilidade. Era objecto móvel, por isso levava-se para qualquer sítio. A dita senhora, pensando no aspecto prático da vida, disse que as famílias quando eram grandes e faziam arroz de tomate, lavavam o bidé bem lavadinho e serviam lá o arroz.
A Dona Maria Leonor não quis aquela casa.
MEXIA, Maria Isabel (2023) – “As Minhas Histórias”
(publicado a 31.12.2023)
NO COMMENTS II
No princípio dos anos 40, após a viuvez, foi viver para Pereira, onde comprou uma quinta, uma senhora muito especial: a Ti’Ana. Ligada à minha família por afinidade, esteve muito presente nas nossas juventudes, sobretudo na minha. O marido era oficial do exército, Augusto Bettencourt. Este casal não teve filhos.
Depois da morte dele, ela resolveu sair de Lisboa, onde sempre tinha vivido. Era filha de uma ilustre família judaica, e sobrinha de Salomão Saragga, um do “grupo dos cinco”, célebre no século XIX. A cultura estava-lhe no sangue. Não é fácil descrevê-la em poucas palavras (as minhas irmãs, se quiserem, que o façam aos filhos). Eu limitar-me-ei a contar alguns episódios da sua vida, de que me for lembrando.
Uma vez na província, ela, lisboeta de gema, enfronhou-se na vida campesina, sem descurar os seus hábitos culturais que lhe fossem possíveis.
Perfeccionista por natureza, nas suas actividades rurais não fez excepção. Orgulhava-se das galinhas que criava com amor, e que davam uma canja que era digna de um manjar dos deuses. Com os ovos delas faziam-se uns ovos-moles (receita antiga) como não havia outros.
Resolveu ter um porco, e começou por comprar um leitão. Arranjou-lhe um curral especial, não sei lá com quê, que eu nunca o cheguei a ver. O porquinho, a que chamou Totó, crescia a olhos vistos. Mas ela não se conformava de o curral estar sempre tão sujo. Tentou vários processos, mas não resultou. Até que arranjou um tratador que lhe resolveu o problema: o curral estava sempre limpinho. Era um regalo para ela ter êxito nos empreendimentos que encetava.
Numa manhã qualquer, o tratador lá foi à sua tarefa. O Totó, assim que viu o homem nos preparativos para o tratamento habitual, o clister, e empunhando o irrigador e a cânula, revirou os olhos, flectiram-se-lhe as pernas e caiu. Foi-se.
MEXIA, Maria Isabel (2023) – “As Minhas Histórias”