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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 3 de janeiro de 2024)
1|2 MARIA CLEMENTINA - A mãe
“Nasci em Setúbal há 87 anos, num contexto familiar adverso. Fui a terceira filha e a única sobrevivente. Os bebés que me antecederam faleceram cedo. Na altura nem se sabia de que morriam os bebés. Nunca os vi. Fiquei filha única.
Os meus pais não se davam bem. Não se entendiam de maneira nenhuma e separaram-se quando eu tinha 10 anos.
Passaram um ano a discutir com quem é que eu ficava. A mim não me perguntaram com quem queria eu ficar, porque naquela altura não se dava qualquer importância à vontade das crianças. Acabaria por ficar com a minha mãe em Setúbal. Como o meu pai tinha família em Lisboa, ele foi viver com as irmãs. E era em casa delas que eu passava algum tempo das minhas férias, para ficar perto do meu pai.
Não me sentia feliz com o casamento conflituoso dos meus pais, mas também não posso dizer que passei a sentir-me feliz após a sua separação. Na verdade, nunca me senti feliz em fase nenhuma da minha vida, senão por breves momentos muito raros.
Nunca casei, porque a minha mãe era muito possessiva. Após a sua separação, eu era a sua única companhia, de quem ela não queria abdicar. Embora eu percebesse isso, a verdade é que acabei por me sentir responsável por ela, um dever moral que não me permitia abandoná-la.
Eu até tinha tendência para ser namoradeira, mas a minha mãe opunha-se sempre. Eu esbarrava invariavelmente com esse entrave, pois ela não queria partilhar-me com ninguém. Então, eu própria acabava os namoricos mal despontavam.
Quando atingi a maioridade, o meu pai conseguiu que eu me candidatasse a um emprego no Ministério das Corporações e Segurança Social, em Lisboa. Lá trabalhei a minha vida toda, durante muitos anos como chefe de secção.
As melhores recordações eram o tempo de libertação que eu passava diariamente sentada no autocarro entre Lisboa e Setúbal. Era um tempo só meu. Como eu gostava daquele escape.
Reconheço que tive sempre uma certa dificuldade em me relacionar com as pessoas, até mesmo com os colegas de trabalho. Tinha complexos. Lembro-me de se aproximar o Natal e eles contarem que a família se juntava - avós, tios, primos - e eu não tinha ninguém, a não ser a minha mãe!”
(continua)
(publicado a 4 de janeiro de 2024)
2|2 MARIA CLEMENTINA - Só dentro de mim
(continuação)
“Recordo que o meu pai alimentava o Natal sugerindo que eu escrevesse uma carta ao pai Natal, que resultava numa prenda no sapatinho. Com a sua partida, a minha mãe nunca o faria. Não mais houve Natal nem presente.
A minha mãe não era fácil e nunca foi feliz: com uma mãe austera, a perda de dois filhos e o divórcio, como poderia sê-lo? Se eu era vítima de circunstâncias, ela também.
Vivi com a minha mãe até ela falecer, com muita idade. Também o meu pai faleceu com 96 anos. Recordo que, já com sessentas, um dia me chamou para me pedir uma opinião: as irmãs estavam muito idosas e ele desejava casar com uma senhora sua conhecida, 10 anos mais nova, para o acompanhar na velhice. Claro que aprovei, ainda que a minha ligação com essa senhora nunca fosse equiparada à que tinha com os meus pais.
Reconheço que nunca fui fácil nem simpática, por ser tão fechada. Nem eu gostava de mim própria. Sinto que afetivamente tive uma vida árida, vazia.
As minhas alegrias eram as viagens entre a casa e o trabalho, e o Teatro, que surgiu na minha vida quando eu tinha 20 e poucos anos.
Um dia, um antigo colega de escola desafiou-me a criar um grupo de teatro em Setúbal. Ele já era interessado pelo teatro, mas eu não. Aí, a minha mãe não se opôs por uma razão: porque ela gostava do mundo do espetáculo - queria ter sido cantora - mas fora impedida pela minha avó. Só por isso não me contrariou. Além do teatro, eu integrava grupos de poesia, tendo escrito dois livros de poesia.
Criámos então o grupo de teatro Ribalta. Além de funções de Direção, ensaiava todas as noites e representava aos fins de semana. Em palco, eu conseguia não ser eu, mas alguém muito melhor, com outras facetas: mais nova, mais velha, a rir ou a chorar. Outra!
Um dos papeis relevantes foi quando o La Féria me escolheu para fazer o papel da Maria Barroso, numa homenagem ao Mário Soares.
A minha última atuação creio que foi no TAS - Teatro Animação de Setúbal - dirigido pelo Carlos César. Ele já faleceu, tal como os meus escassos amigos. Essa é a minha maior tristeza.
Feito o balanço da minha vida, defino-me como uma pessoa só. Sempre fui só, dentro de mim.”