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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 26 de dezembro de 2023)
1|2 O GRANDE TITA - Uma vida a combater
“A minha aparência é a minha farda, e o meu nome - Vitor Matos - foi substituído por Tita Matos, por herança do meu pai. Sei que posso assustar pessoas, mas quem fala comigo perde logo o medo. Sou amável e facilmente dou um abraço.
Acabei de sair do ginásio e vim num pulo à Casa do Artista ver a minha avó. Desde que ela entrou há um mês, faço por vir todos os dias, às vezes mais do que uma vez, e regresso a seguir ao ginásio, onde pratico e dou aulas de Boxe e Kickboxing. Trabalho ainda como segurança.
Nasci há 43 anos na Madragoa, numa família de fadistas: a minha mãe, a minha avó, o meu avô, todos cantavam. Sinto-me um fadista de alma, mas não canto. Quando conduzo, tenho o rádio sempre na estação Amália. O fado é mais do que um estilo musical, é um estado de espírito e uma forma de vida.
Os meus pais foram ambos toxicodependentes desde cedo. Foi a minha avó Julieta, mãe da minha mãe, que me criou desde bebé. A dependência deles nunca foi ultrapassada. Não foram capazes de viver. Ambos puseram termo à vida, em momentos diferentes. O meu pai há 12 anos, tendo deixado uma carta e dinheiro para o seu funeral. A minha mãe foi há 7 anos. Mesmo fadista, nem a música a resgatou. Quero pensar que eles estão agora num lugar de conforto.
Nunca houve um corte de relações entre nós. Mas quando o meu pai me aparecia pedrado nos locais onde eu dava aulas, eu tinha de me impor para que ele não viesse perturbar. Acredito que quando eu era muito bebé, talvez eles me tivessem amado, mas dessa fase, infelizmente, não me lembro. Só recordo os anos maus.
A fraqueza dos dois provocou a minha repulsa às drogas. Comecei a trabalhar aos 15 anos, altura em que passei também a treinar, inicialmente Kickboxing, full contact. Comecei em peso pluma e fui evoluindo até combater em pesos pesados. Durante esse processo, fui campeão regional e nacional em várias categorias de peso.
Os títulos mais importantes, conquistei-os em 2017, já com 36 anos e na categoria de Super Pesado: fui campeão ibérico e da Europa, e ainda campeão do Mundo em três modalidades: K1 (conhecida como a disciplina rainha do Kickboxing), Low-Kick e Boxe Chinês.”
(continua)
(publicado a 27 de dezembro de 2024)
2|2 O GRANDE TITA - A minha avó
(continuação)
“Apanhei a tropa no último ano em que era obrigatória e vim de lá ainda mais possante. Não me regozijo do físico que desenvolvi, mas dos muitos amigos que lá ganhei e ficaram para a vida.
Continuo a combater. Há pouco fui a França e defrontei-me com uma torre de 2,12m, quando eu só tenho 1,80 de altura. Tenho de apostar menos na resistência e mais na estratégia. Há tantos campeões portugueses no Kickboxing, infelizmente desconhecidos no nosso país porque Portugal só valoriza o futebol.
Com muita pena minha, os meus pais nunca festejaram as minhas vitórias, ao contrário da minha avó, que as acompanhou de perto com grande felicidade. Mas pensei muito neles e no que eu teria gostado de os ver orgulhosos de mim.
Prefiro pensar em aproveitar a minha avó todos os dias, enquanto a tenho. Ela já sofre de demência e há muitos dias em que não me reconhece. Mas reconheço-a eu todos os dias e é também por mim que aqui venho.
A minha avó foi uma sofredora: perdeu a minha mãe e também um tio meu, mais recentemente. Ela vivia com ambos e foi ela que deu com os seus corpos sem vida.
Não tenho mulher nem filhos. Tive uma namorada com quem vivi durante 12 anos em casa da minha avó. Começámos muito miúdos. Ela era tratada como uma neta mais. Mas a vida e os diferentes horários esvaziaram a relação. Eu trabalhava de noite como segurança. Quando chegava a casa, estava ela a sair para o trabalho.
Por respeito à minha avó, nunca lhe apresentei mais ninguém porque nenhuma outra valeu a pena. Hoje, é ela a única pessoa de família que me resta.
Infelizmente, quando a fui visitar a casa há um mês e pouco - já com diagnóstico de demência - e a vi caída no chão, percebi que não poderia continuar a viver sozinha.
Ainda bem que existe a Casa do Artista, um destino que ela sempre desejou e onde sei que está bem. Esta está a ser uma etapa nova para ambos. Quando me passa pela cabeça que o seu fim possa estar próximo, afasto logo o pensamento. Nunca se está preparado para perder quem se ama desta maneira.
A minha avó é a minha heroína, a quem devo os valores do respeito e da lealdade; e tudo o que sou hoje!
Acho mesmo que já não há gente assim!"