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“Aqui não é permitido envelhecer.” – Armando Cortez
por Maria Helena da Bernarda
(publicado a 3 de agosto de 2023)
1|2 O SORRISO QUE NUNCA PERDI - Pés no ar
"Não gosto de mostrar má cara a ninguém. Não que não tenha os meus problemas, mas as pessoas é que não têm culpa.
Dantes era muito chorona - tudo me comovia - mas a vida ensina-nos muitas coisas e nós vamos endurecendo, ou melhor, vamos aprendendo a relativizar. Se deixei de chorar, o sorriso nunca o perdi. Ainda me lembro de a minha mãe me ralhar: ‘Natália, não podes estar sempre de taxa arreganhada. Isso parece mal!’ (risos)
Vim para a Casa do Artista há 5 anos como acompanhante da minha irmã, a actriz Cecília Guimarães, com quem vivi a minha vida toda. Nenhuma das duas casou; sempre vivemos com os nossos pais e juntas continuámos após os seus falecimentos.
Quando a minha irmã foi perdendo capacidades, ela não queria ver-me sacrificada com as tarefas domésticas e sugeriu a mudança para aqui. Eu nunca a largaria. Infelizmente largou-me ela aqui dentro, pelas piores razões. Enquanto eu estive ao pé dela, dando-lhe as refeições, ela conseguia agarrar-se à vida; quando a levaram para o hospital, pouco tempo depois, faleceu. Mas nem a sua morte me dá o direito de fazer má cara a quem cá está.
Fui ‘ponto’ no Teatro Experimental dirigido pelo excelente Pedro Bom, apenas quando era necessário. A minha carreira foi mais planificada, mas não ‘pés na terra’. Também voei bastante, pois trabalhei longos anos numa agência de viagens. Adorava viajar.
Fiz o Curso de Instrução Prática da Escola Lusitânia Feminina, que incluía Línguas Estrangeiras, Estenografia, Dactilografia, Recreações Matemáticas… Era um curso muito completo que preparava bem as mulheres para funções administrativas, entre as quais o Secretariado.
No início da minha vida profissional, o Solnado convidou-me para ‘ponto’, pois uma voz suave e feminina era a ideal. Mas não era esse o meu sonho. Depois de uma passagem por uma empresa de cortiças, trabalhei durante 20 anos na Sandoz - um importante laboratório farmacêutico - mas o que me realizou verdadeiramente foi a agência de viagens onde estive muitos anos. Se já viajava na farmacêutica por força dos congressos que fazia, então na agência viajei muitíssimo, o que era sempre uma fonte de prazer.”
Fotografia: Mª. Helena da Bernarda
(publicado a 4 de agosto de 2023)
2|2 O SORRISO QUE NUNCA PERDI - Piano a quatro mãos
“Talvez por gostar tanto sempre daquilo que fiz, nunca me entreguei sentimentalmente a alguém, para não comprometer a minha vida profissional. Conheci pessoas, tive assim um namorico ou outro, mas não tenho pena de ser solteira. Talvez de não ter filhos, sim, pois sempre gostei muito de crianças.
Hoje, há mulheres que optam por ser mães solteiras mas, considerando-me até muito aberta aos meus 94 anos, essa opção deixa-me dúvidas; questiono-me se não será uma forma de egoísmo. Faz-me impressão que uma criança não nasça num quadro de pai e mãe, mesmo que a vida possa mais tarde desfazê-lo. São épocas e, na minha, era impensável trazer deliberadamente ao mundo uma criança sem pai. Eu e a minha irmã tivemos uma educação conservadora, mas aberta ao tempo.
Tive uns excelentes pais, mas era com o meu pai que eu mais me identificava. Era um Senhor com maiúscula, de uma rectidão irrepreensível, licenciado em Economia e Finanças. Era afectuoso e dava-nos muita atenção; nunca nos batia, aconselhava. Além disso, tocava muito bem violoncelo, tanto que chegou a tocar numa orquestra. Nós tínhamos piano em casa, a minha irmã ainda fez o 9º ano de piano mas eu fiquei-me pelo 6º. Tanto que eu adorava os nossos serões musicais: o meu pai tocando violoncelo e nós as duas tocando piano a quatro mãos.
Vivi sempre com eles até ao último segundo das suas vidas. Perdi o meu pai no dia dos meus anos. Deixei de celebrar o meu aniversário. Para trás ficaram as lágrimas.
Tive quem gostasse de mim mas, honestamente, acho que nunca amei verdadeiramente um homem. Não o suficiente para casar. Não o suficiente para falhar os compromissos profissionais. Não, para me submeter a um homem que me dissesse: ‘Agora não vais para aqui ou para ali’. Na minha geração, era isso que se esperaria ouvir de um marido. Mas a vida é o que tem de ser e a felicidade de uma mulher não passa necessariamente por ter marido e filhos, mas por se realizar como pessoa. Eu sinto-me realizada, sobretudo pelas pessoas tão interessantes que conheci. Com 94 anos, ainda tenho muitas amizades que me vêm visitar. Mais de uma mão cheia! Que mais posso pedir?”
Fotografia: Mª. Helena da Bernarda